sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Previously on Lost...

Pensando sobre a série Lost, fui questionado qual era meu personagem favorito, já que eu assisti a série mais de uma vez. O meu pensamento imediato foi de que nenhum deles era perfeito em todos os sentidos. Sempre houve algum instante em que os personagens falhavam em algo importante. Bem, isso parece ser comum na vida de qualquer pessoa, mesmo que ninguém busque falhar. Então este comentário não foi algo tão importante assim.

Acho que ao querer apontar para o "personagem favorito", seja de filme, série, desenho ou qualquer outra coisa, queremos apontar para "aquele com o qual nós mais nos identificamos" ou "que age de acordo com aquilo eu faria se estivesse naquela situação". Porque diríamos que é nosso personagem favorito se não nos causa certa admiração ou desejo de imitar? Nesse sentido, é engraçado tentar imaginar o que se passa na cabeça das pessoas que admiram vilões. 

Bem, a minha resposta foi que o personagem mais impressionante da série Lost é John Locke, um personagem que, estando sob cadeira de rodas antes de cair na ilha, recebe um "milagre" e começa a caminhar imediatamente que o avião cai sobre a ilha. O nome deste personagem é uma referência ao filósofo britânico do século XVII, mas não me parece ser apenas um nome de um personagem qualquer. O filósofo é autor de uma tese que argumenta como sendo o trabalho como o fundamento da propriedade e cujos limites podem ser estabelecidos a partir daquilo que é possível consumir.

Na série, John Locke parece ser o único que imediatamente reconhece a riqueza da ilha, tanto que aparece comendo uma laranja e dando um grande sorriso já no primeiro episódio. Mas ele não é egoísta e tenta acumular os bens da ilha para si mesmo, tanto que propõe caça aos javalis para alimentar o grupo, utiliza do seu tempo para construir um berço para o bebê da Claire que está prestes a nascer, ajuda com ferramentas e não com o produto final. Ele também ajuda para que Charlie escolha livremente abandonar seu vício com a heroína, oferecendo a ele a chance de não lhe pedir a substância que o estava escravizando. Ele mostra para Charlie um casulo do qual poderia utilizar sua faca para facilitar que a borboleta então saísse dali, mas que esta não teria forças suficientes para sobreviver sozinha, dado que não se esforçou para vencer aquilo que a estava impedindo de seguir adiante. Ele explica que poderia simplesmente destruir a heroína de Charlie, mas que essa não seria uma decisão que faria de Charlie uma pessoa forte para a vida.

Locke reconhece que a ilha em que se encontra é um lugar especial e me pareceu ser o único que não se aterrorizou com isso, mas se sentiu maravilhado por tanta beleza e riqueza que a ilha poderia lhe dar. Ele diz em um episódio: "I've looked into the eye of this island, and what I saw... was beautiful" (eu olhei dentro do olho desta ilha, e o que eu vi... era lindo). Sua curiosidade em descobrir o que a ilha realmente é, me parece ser uma atitude razoável diante de tanta coisa que acontece na série. 

Mas diferentemente do filósofo empirista, o personagem John Locke era um homem de grande fé. Ele era guiado por suas intuições e sonhos, sempre buscando sentido em tudo que observou em uma profunda conexão com a ilha. Ele era um homem de esperança, ainda que às vezes se fundamentava em falsos pressentimentos. Muitas vezes ele se sente perdido e sem resposta do por quê as coisas acontecem de determinada forma e não saem como o planejado.

A reação de Locke ao receber uma nova oportunidade na vida é aceitar este recomeço aproveitando ao máximo o lugar onde está. Jacob afirmou que todos tinham uma vida infeliz antes de chegarem na ilha e por isso ninguém fora retirado de um mar de rosas; e Locke afirmou para Shannon que a ilha era uma oportunidade para todos recomeçarem as suas vidas. Mas é somente Locke que de fato está satisfeito por estar na ilha e quer fazer de tudo para lá permanecer. 

A questão é que Locke estava cansado de tudo de ruim que havia passado antes de chegar à ilha. Sua viagem para uma aventura na Austrália fora frustrada por algo muio triste. Sua vida em geral fora bastante decepcionante: seus pais o abandonaram para adoção, até o momento em que, estando ele próximo dos 50 anos, seu pai aparece na vida dele e lhe "rouba" um rim (pede gentilmente que Locke doe um rim mas depois ignora-o como se fosse nada). Mais pra frente, Locke descobre que seu pai está envolvido na morte de um garoto e decide intervir, até o momento que o próprio pai o empurra pela janela, do oitavo andar. Ele afirma mais tarde para Linus que sentiu sua coluna ser esmagada! Locke fica em torno de 4 anos em uma cadeira de rodas sem aproveitar nada da natureza da qual tinha tanta vontade de fazer suas trilhas e aventuras. Ele viaja para Austrália mas não consegue participar da sua aventura dada a sua condição de cadeirante.

Pode ser dito também que esses traumas que Locke possui cooperam para que ele se sinta mais à vontade na ilha. Tanto ele quer ficar que destrói o comunicador com o qual Sayid está tentando buscar uma forma de sair da ilha e dá a Sayid uma bússola estragada; destrói um submarino, destrói a estação de comunicação com o mundo externo, etc. Parece que há algo do passado que ainda atrapalha um pouco o seu caminho na ilha. Linus argumenta com Locke que este ainda estava meio perdido, e que seu propósito não era ainda tão bom quanto poderia ser até que se libertasse desses traumas do passado.

Tendo conseguido esquecer do que o passado lhe assombrara, Locke agora está disposto a proteger a ilha. Sua missão é impedir que pessoas más façam mau uso das coisas boas que a ilha possui de belo e valioso. Ele então passa a liderar um grupo de pessoas que também estão dispostas a proteger a ilha e veem em Locke a pessoa mais sábia para dar sequência nessa missão. Mas alguns eventos tornam muito difícil o que Locke precisa fazer para que as coisas "voltem ao normal". 

Acredito que tu deves saber o que ele acaba fazendo e como ele termina. Locke insiste para que Jack não saia da ilha, mas permaneça lá para cooperar com a proteção da ilha. Jack então argumenta que aquele lugar não precisava ser protegido pois era apenas uma ilha qualquer e então Locke certeiramente profetiza que sair da ilha iria corroer o coração de Jack até que ele quisesse insistentemente voltar. Locke então precisa se sacrificar para salvar a ilha e seus amigos.

Bem, Locke não me parece ser apenas um personagem de uma série de TV. Ele parece um ser humano num planeta belo e desconhecido onde coisas estranhas das mais variadas acontecem. Não é o nosso planeta uma ilha isolada entre tantos outros planetas? 

Parece que também deveríamos utilizar corretamente os recursos da Terra e contemplar o que há de belo por aqui, aceitando que esta é nossa condição agora, até que algum dia nos mudemos para outro lugar. Sabemos que apesar de tudo que há de belo aqui disponível, o nosso passado ainda pode nos assombrar de vez em quando, até o momento em que possamos nos libertar completamente de tudo de ruim que aconteceu e tomar o fardo de proteger o presente que nos foi dado: o milagre de estarmos caminhando conscientes enquanto todos os outros animais não possuem qualquer capacidade de olhar na volta e ver o quão belo são todos estes atos! Parece-me haver uma fonte de energia para este planeta tanto quanto existia na ilha. O fato é que muitos de nós parecem ignorar isso como se fosse algo muito comum.

Deixamos que nossa incapacidade de responder todas perguntas ou de entender o mundo nos assole e deixamos de estar satisfeitos com nossa posição, sempre querendo "sair daqui e ir para ali". Mas deveríamos contemplar aquilo que está em nossa volta.

O meu desejo é o de alguma forma imitar Locke nesses sentidos positivos, e poder dizer "I've looked into the eye of this island, and what I saw... was beautiful"...

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