quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Não nos contentamos em seguir regras: queremos uma justificação para elas

O filósofo Immanuel Kant foi sem dívidas um dos mais significantes escritores da história. Seu profundo conhecimento de correntes como o Racionalismo e o Empirismo e, também, seu conhecimento da Física de Isaac Newton, fizeram de seus escritos filosóficos um material fundamental no pensamento de cientistas como Albert Einstein. Kant é justamente associado ao Iluminismo. Foi responsável por destacar a diferença entre o uso público e o uso privado da razão; a autonomia e liberdade do intelecto humano ou a dependência do saber a partir daquilo que os outros pensam.
  
Em seu livro denominado “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, Kant busca um critério objetivo para a fundamentação da moralidade que não possa ser intitulado simplesmente como uma lei onde alguém a obedece apenas por inclinação ou pressão social. O objetivo é a busca e fixação de um princípio supremo de moralidade. Para que tal procedimento ocorra, ele argumenta que o sujeito precisa agir com sua “boa vontade”; e é esta boa vontade que determina e encaminha o bom procedimento de ações e seria de certa forma importante para a felicidade do homem. Faz uma separação entre as pessoas que agem conforme o dever e as pessoas que agem por dever.  Agir conforme o dever é agir através de inclinações sociais. Agir por dever é agir por respeito à lei como um valor moral. Se uma pessoa agiu apenas por “cálculo interesseiro”, entende-se que não há aí qualquer sinal de boa vontade, mas alguma vontade de satisfação pessoal e desejo de não universalização da máxima. 

O filósofo formula um procedimento de como testar se a máxima que o indivíduo pretende adotar pode formar uma lei universal que qualquer um pode consentir com ela. Seu procedimento é intitulado “Imperativos Categóricos”. As formulações dos imperativos categóricos são: (a) age apenas segundo uma máxima (subjetiva) tal que possas, ao mesmo tempo, querer que ela se torne uma lei universal (princípio objetivo), ou seja, age apenas segunda uma lei universal da natureza; (b) age da maneira que uses a humanidade tanto na tua pessoa quanto na pessoa do outro, sempre e simultaneamente como um fim e não simplesmente como um meio, ou seja, agir com o consentimento da pessoa; (c) age de tal maneira que a vontade pela sua máxima se possa considerar a si mesma, ao mesmo tempo, como legisladora universal. 

Kant argumenta que devemos nos indagar através dos imperativos categóricos que “se eu, sendo autônomo em minhas ações, quero que minha máxima seja universalizada”. Se minha máxima puder ser aplicada para todos os seres racionais, esta máxima vai entrar naquilo que se deu o nome de “comunidade moral ideal”. É partir dos imperativos categóricos que devo analisar se quero que minha máxima se torne um princípio objetivo e que, portanto, deve ser seguido universalmente. Embora habitualmente usemos as pessoas como um meio e nem sempre como um fim, Kant argumenta que o problema está em usar a pessoa simplesmente como um meio, ou seja, que a pessoa deve consentir com o que está sendo feito.

Imagine a seguinte situação: um menino chamado Astrolábio quer aprender um pouco de física nuclear e decide ir até o MIT (Massachusetts Institute of Technology) questionar ninguém menos que Ian Horner Hutchinson para aprender o que quer. Ele então chega no professor e faz seus questionamentos. É perceptível que Astrolábio não está usando o Dr. Hutchinson como um fim em si mas como um meio de obtenção do conhecimento que ele tanto quer, mas também é claro que Astrolábio não está usando-o simplesmente como meio: o Dr. Hutchinson sabe claramente da intenção do menino Astrolábio e este age de tal forma que admite que qualquer outra pessoa poderia fazer o mesmo. Há um consentimento entre ambos e a máxima do menino Astrolábio passa pelo teste de universalização no instante em que assume que qualquer um pode fazer o mesmo que ele fez.

Agora imagine o caso onde um outro menino chamado Polvo, recebe discretamente um tríplex como propina. O que o Polvo está dizendo é “posso receber algum benefício em troca de atos ilícitos”. Mas é nitidamente óbvio que Polvo está utilizando sua máxima apenas para si mesmo e não o quer que todo indivíduo faça o mesmo que ele fez. Talvez ele queira que algum outro grupo restrito a sua própria vontade faça isto. Se o Sr. Polvo decide pensar “vou receber propina” e de fato assim agir mas o Sr. Polvo não quer que pessoas saibam que está recebendo seu desejado tríplex em troca de alguns favores extra oficiais ou saibam mas não devem agir de tal forma, então temos aí um problema, pois no fim das contas ele está violando o critério da universalização da máxima que Kant argumenta ser fundamental em qualquer procedimento.

Entende-se que a razão deve evitar contradições e esta ocorre quando alguém, em determinada situação, defende uma teoria mas quer abrir exceção em algum instante que lhe convém. É pregar uma máxima que deva ser aplicada apenas em casos isolados. Entendo eu que isto deve ser evitado.

Se alguém faz algum cálculo e percebe que o resultado final de todo o procedimento da sua vida será mais abundante desgraça do que alegrias, mas ainda assim é capaz de impedir a si mesmo de acudir seu desejo interno de adiantar sua sentença de inevitável sofrimento e, portanto, não tirando sua própria vida, ele na verdade está querendo dizer que outros indivíduos diante da mesma circunstância de suicídio devem da mesma forma, suportar os sofrimentos como um dever que comporta valor moral. A contradição está quando o indivíduo defende a teoria de que na sua circunstância de calamidade está justificado a cometer suicídio mas quer abrir exceção de sua máxima para outra pessoa, como por exemplo, um familiar. Quem quer retirar a própria vida deve estar querendo dizer que esta sua máxima pode se tornar uma lei universal que comporta valor moral – o que me parece um tanto absurdo.

Se Kant consegue, a partir dos imperativos categóricos, formular um critério objetivo para a moralidade é algo bem discutível. Alguém poderia argumentar, por exemplo, que a indiferença moral parece ser o melhor procedimento num mundo onde não há evidências em favor da objetividade da moralidade; embora alguns pensadores argumentam que tal procedimento seria contra intuitivo e impossível de viver assim, dado um sentimento profundo de valoração do próximo que é mais do que as análises naturalistas dizem sobre tais procedimentos. Mas isso é algo que comentarei em outra postagem.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Concretismo x Atualismo

Concretismo é o nome de uma teoria em metafísica exposta pelo grande filósofo americano David Lewis, que também era famoso por utilização de substâncias alucinógenas. Lewis possuía uma crença radical concernente à teoria dos mundos possíveis do qual deu o nome de concretismo, mas que também é chamada de realismo modal: mundos possíveis não são meramente possíveis como quando se fala no mundo atual e sua contingência, mas eles são tão reais quanto o mundo em que vivemos e existem no sentido bruto da palavra. 

É importante aqui fazer um breve comentário sobre a confusão entre mundos possíveis e mundos paralelos. Vou apenas deixar claro o que não é um mundo possível e no decorrer do texto ficará mais clara a tese dos mundos possíveis. Imagine que um menino Astrolábio viajou por zilhões de quilômetros pelo universo e encontrou uma dimensão ou uma forma de acessar algum mundo onde as pessoas, eventos, línguas, ciências, etc., são repetições idênticas ou extremamente semelhantes às que podemos presenciar aqui neste mundo e universo: Astrolábio não está em um mundo ou universo diferente do atual. Mundo possível é uma tese metafísica; mundo paralelo não. 

De acordo com Lewis, os mundos possíveis são "atuais" para os habitantes de outros mundos, embora seja impossível haver qualquer conexão causal entre um e outro mundo. Também não é possível fazer qualquer tipo de observação sobre o que acontece em algum dos infinitos mundos possíveis, nem pra mandar uma mensagem no WhatsApp.

O argumento de Lewis para o concretismo se forma no fato de que nem todo conhecimento que possuímos exige um contato causal com o objeto conhecido; podemos conhecer verdades matemáticas sem apelar para nossas experiências sensoriais. A partir disso, Lewis infere que da mesma forma os mundos possíveis possuem realidade efetiva e podemos ter conhecimento disso, mesmo com a condição de impossibilidade de qualquer conexão causal entre um mundo e outro. 

Sendo assim, mundos possíveis são mundos da mesma forma que o nosso, eles apenas não são atuais para nós por não se poder indicar o "aqui" e o "agora" dos objetos, propriedades, etc.

Lewis, diferentemente do filósofo Alexius Meinong, não admite a possibilidade de que objetos impossíveis ou mundos impossíveis possam existir. Em sua teoria dos objetos, Meinong formula a ideia de que objetos impossíveis tal como círculos quadrados "absistem" dado o valor de sua mínima disposição ontológica. A partir de algo que ele chama de ser-tal ("sosein") é possível afirmar que a representação de alguma forma de "objetos impossíveis" indica que o conteúdo dessa afirmação "absiste". As ideias de Meinong pareciam indicar que mesmo objetos não atuais e impossíveis não possam existir "aqui" e "agora", deveria existir algum mundo possível onde qualquer objeto possível de ser pensado, mas aparentemente impossível de ser representado deveria, de alguma forma existir em algum mundo possível. 

Mas me parece que não deveríamos apenas depender da intencionalidade do pensamento para inferir propriedades absurdas e argumentar que a partir dessa possibilidade de valor ontológico de referência, tudo que é objeto do pensamento deve existir. 

Os filósofos atualistas têm como seu maior defensor atual o filósofo americano Alvin Plantinga. Para os atualistas modais, mundos possíveis são os infinitos modos de como as coisas poderiam ser. E nesse sentido, parece evidente pensar nessas infinitas possibilidades e modos de como as coisas poderiam ser diferente. Não parece verdadeiro que muitos eventos ou propriedades do mundo atual devem ser necessariamente como o são. Podemos pensar, por exemplo, naquele instante em que dizemos para nós mesmos: "eu deveria ter escolhido A no lugar de B". O que estamos dizendo, nesse caso, é que nossa escolha é uma contingência e que "existe" (é um estados diferente de coisas atuais) algum mundo possível onde efetivamente aquela pessoa escolheria A no lugar de B, se fosse o caso de tal mundo ser atual. 

Plantinga então argumenta que outros mundos não são "realizados", embora pudessem ser. Para ele, mundos possíveis não são entidades concretas instanciadas, mas que tais mundos possíveis não realizados são apenas entidades abstratas, ainda que seja possível de alguma forma especular muito sobre tais mundos possíveis.

Chorar?

Muito já foi dito que chorar tem algum valor, seja para reconhecer externamente as dificuldades e tristezas da vida ou para demonstrar, ainda que involuntariamente, a nossa insatisfação ao reconhecermos que o mundo não é exatamente como queremos que ele seja. Aliás, ainda bem que o mundo não é como queremos e existem muitas razões para pensar nesse problema. Na verdade é logicamente impossível que o mundo seja "como queremos que ele o seja", dado as diferenças de crenças em que mentalmente operamos. Crenças contraditórias não subsistem na realidade. É, portanto, impossível que seja realizável um mundo de acordo com a vontade de mais de uma pessoa.

Mas não quero falar sobre o simples ato de chorar. Pois sempre houve alguns melindrosos que não aguentam qualquer dificuldade que já desandam a chorar infinitamente sem poder aguentar o mínimo possível de dificuldade. O choro deles é como uma daquelas pessoas ali acima que lutam proverbialmente (e só) para a necessidade de o mundo real ser do modo que eles querem, não conhecendo ou se conformando com o fato aparentemente evidente de que é impossível criarmos um mundo de acordo com nossa própria vontade. Quero falar sobre o benefício do ato de chorar e citar algumas fontes do passado que também reconheceram a importância das lágrimas. Eis adiante alguns comentários.

Começarei por uma fonte antiga e que se encontra no livro do Eclesiastes, capítulo 7 e versículo 3, que diz: "Melhor é a mágoa do que o riso, porque com a tristeza do rosto se faz melhor o coração." É óbvio que o escritor do livro não é masoquista ou é bipolar por dizer que chorar é melhor do que rir, ou ainda que rir é algo ruim e que o riso deveria ser extinto da face da Terra. Acredito que o que ele está querendo argumentar é sobre a natureza e o poder de reflexão que a lágrima pode trazer em relação ao riso. Raramente estamos em condições de refletir sobre a vida e nossas fraquezas enquanto estamos rindo; do contrário, a mágoa acaba por produzir um estado de reflexão no coração do sensato que é melhor do que o riso. 

Outra passagem que achei interessante sobre o ato de chorar é descrita no livro do psiquiatra sobrevivente do Holocausto e criador da Logoterapia, Viktor Frankl. Ele descreve um caso onde outro prisioneiro relata que "curou os edemas da fome" ao chorar e lamentar-se por tudo aquilo que estava acontecendo. Nesse caso também o realismo (que é diferente de um pessimismo) diante da situação gera um efeito positivo tanto no estado psicológico da pessoa quanto na aparência externa.

O próprio Jesus, como que não podendo ou querendo evitar sentir o sofrimento do próximo, derrama lágrimas ao avistar a cidade de Jerusalém e refletir sobre a consequência mortal dos pecados; Ele também chora com Maria, após ver que ela estava profundamente triste com a morte de seu irmão. E é ainda bem provável que em sua Agonia no Getsêmani, muito chorou avistando a infinita dor da separação de Deus da qual estava prestes a experimentar na morte de cruz. Jesus não chora fingidamente e nem desiste de tudo por causa dos seus sofrimentos, mas observa avidamente a efetividade do Plano Divino, numa certeza absoluta de que o ato final de sua vida é consumador das iniquidades, e que a morte não é o fim, mas um recomeço.

Gostaria de poder escrever sobre o fim do livro "Crime e Castigo", de Dostoiévski. Mas não quero dar spoilers e nem ser tão exaustivo aqui. Perguntem-me sobre isso.

Não devemos também tentar evitar que uma criança chore diante do sofrimento e da dor que sente, em uma tentativa de represar a sua lágrima estamos na verdade impedindo que esta criança aprenda a reconhecer as dores e sofrimento desta vida, algo que certamente é impossível de fazer. Um dia ou outro ela irá sofrer e precisará chorar por isso. Devemos ensinar a elas que a dor um dia passará e que chorar diante de situações que não estão em nosso poder de ser diferente é a primeira coisa que podemos fazer.

Acredito que o fato de não externarmos o que pensamos ou sentimos acaba por dificultar o nosso progresso na vida. Mas não é um simples ato de externar tudo o que vêm à mente sem qualquer reflexão sobre tais pensamentos, pois há ainda muitos que preferem externar suas convicções irrefletidas num egoísmo perverso ou até mesmo num ato de externar fingido e destituído de qualquer sentimento realista sobre a própria condição. Externar em lágrimas é fazer da consciência algo que encontra a realidade da nossa vida cheia de sofrimentos. É como Hannah chora no final do filme "O grande ditador", desabafando consigo mesma e reconhecendo sua humanidade frágil contrastada ao pensamento mecânico da época; mas numa esperança de que algum dia toda lágrima secará e haverá uma consolação que perpétua toda extensão do futuro para aqueles que não vivem indiferentes para a realidade.


Aquele que nunca chorou, que atire a primeira lágrima.

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Ex lingua stulta veniunt incommoda multa

Bah! O grande matemático e lógico do século XX Kurt Gödel costumava dizer que quanto mais ele refletia sobre a linguagem, tanto mais se admirava como as pessoas conseguem se comunicar umas com as outras. Confesso que não entendi muito bem o que ele quis dizer... Brinks!

A linguagem é um elemento fundamental em qualquer tipo de relacionamento, seja quando alguém quer elogiar ou até mesmo ofender outra pessoa. A linguagem também é utilizada para muitas outras coisas, tal como identificar plágio, ou ainda estilos linguísticos. É usada também para poesia, contos, descrições de ambientes ou ainda estados psicológicos; a linguagem também serve para criar humor.  Usamos a linguagem para demonstrar que não entendemos algo – ou pelo menos deveríamos usar quando for o caso, mas às vezes fingimos que entendemos simplesmente para não ficar com o status de intelectualmente inferior –, usamos também para demonstrar alegria, tristeza, esperança, desespero, satisfação, desgosto, confiança, suspeitas, ironia, e tantos outros sentimentos.

Mas a linguagem também é útil para entender tudo isso. Sendo assim, a linguagem é efetiva em um relacionamento qualquer, quando pressupõe tanto um sujeito x que expressa uma proposição p, quanto um sujeito y que compreende tal proposição. De nada serviria a linguagem de alguém sem um sujeito receptor que compreende o significado dos mecanismos da linguagem. É como na analogia do Sol na República de Platão. Talvez a um estudante de filosofia, alguém poderia perguntar, por exemplo, se aquele já conversou com um sofá. A resposta, após uma análise da sutileza da ironia, seria algo como: "sim, ele disse sente-se". Mas ao tolo devemos responder de acordo com suas necessidades, é claro, pois seus esforços para aperfeiçoar a comunicação são quase nulos, e os resultados, zero. Os objetos nada dizem diretamente. Mas é necessário entender esses problemas de linguagem.

É verdade que nem sempre optamos por utilizar a linguagem da melhor forma possível. Tome por exemplo um caso no livro "o idiota" onde um homem está fumando seu charuto dentro de um trem, próximo a duas senhoras que estão sentados em sua frente, insatisfeitas com a fumaça produzida pelo charuto dentro do trem. Existe uma linguagem inicial entre o fumante e as duas senhoras, que expressa pela insatisfação das senhoras. O caso se segue com o homem fumando tranquilamente seu charuto pra fora da janela, pois segundo ele, estas senhoras estão falando em inglês e, portanto, não estão falando nada. Ele considera que deveriam falar algo, seja com palavras em Russo (se fosse possível pra elas) ou com alguma outra expressão de gentileza que demonstrasse o desejo de que este senhor apagasse o charuto ou jogasse ele pela janela. O senhor inclusive diz que é pra isso que serve a linguagem! A senhora que está com um pequeno totó prefere então dar preferência a uma linguagem mais agressiva e decide arrancar-lhe o charuto das mãos e atirar pela janela! Não me perguntem porque ela faz isso. Mas a resposta utilizada por este senhor é pior ainda. Ele então agarra o pequeno totó que está no colo de uma das senhoras e o atira pela janela, atrás do charuto!

Outro caso que achei interessante sobre a linguagem está localizado no "Senhor dos Anéis". Samwise, tendo muitas razões para crer que o seu amado amigo estava morto, decide dar sequência no plano de destruir o Um Anel. Após descobrir que Frodo estava vivo, Sam decide imediatamente devolver-lhe o anel para que Frodo carregasse novamente esse fardo terrivelmente pesado, mas cogita a possibilidade de ajudar seu amigo carregando o anel. A resposta de lânguido Frodo foi imediatamente bruta, ordenando que Sam o devolvesse e acusando-o de ser um ladrão! Mas Sam percebe que talvez não estivesse em poder do seu melhor amigo agir de outra forma naquele momento e não considera como sendo isso o que o verdadeiro Frodo diria para ele. Havia uma tendência muito forte de eles iniciarem uma briga naquele instante, mas a linguagem existente entre eles foi fundamental para que Sam não responder igualmente com palavras severas e Frodo se desculpar por ter sido arrogante.

Há, porém, os casos onde não somos coerentes com aquilo que dizemos. Que também pode ser representado naquele ditado popular: "faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço". Aliás, porque sequer deveríamos considerar essa uma pessoa razoável para darmos ouvidos ao que ela diz com os lábios? Afinal, ela no fundo quer fazer (e verdadeiramente o faz) outra coisa mas não o que seus lábios professam. Sua linguagem mais marcante são seus atos e não o seu discurso proverbial e cheio de aforismos inspiradores. É de se pensar que é como quando Chesterton compara Nietzsche com Joanna D'arc: parece que Nietzsche é inspirador com toda a sua disposição retórica para enfrentar grandes problemas etc., mas quem vai a luta e não temeria nem mesmo um exército sozinha é Joanna D'arc.

Ok! Talvez tu diga que eu deva ter lido o suficiente para tanto conseguir me expressar quanto compreender muita coisa. E de fato sobreviver a leituras de textos complexos como os de Duns Scotus e captar os floreios sem muito sentido de filósofos continentais de certa forma me ajuda bastante na compreensão e elaboração de ideias por conseguir manejar razoavelmente a linguagem, mas isso de nenhuma forma determina o comportamento diante de certos casos. Não nos parece que Kurt Gödel deveria também sugerir que as pessoas muitas vezes entendem o que as outras estão dizendo, mas simplesmente não optam por revidar agressivamente? Qual a diferença entre o relato de Samwise com seu mestre Frodo, e o caso do charuto e do totó dentro do trem?

Parece-me que a perfeição da linguagem está ligada com a lógica do coração baseada na aptidão intuitiva de se relacionar com gentilezas, exposta por Pascal; e que a ausência de uma boa linguagem é uma das causas de grandes conflitos. Teologicamente, é o que sugere alguns versos de Tiago sobre o poder de que a língua tem de destruir. Ex lingua stulta veniunt incommoda multa! (De uma língua tola vêm muitas palavras irritantes!)

Entendemos a arrogância e a incoerência, mas nem sempre precisamos responder a mesma altura e agir como se fosse inevitável dar uma resposta automática que é como "fumaça para os olhos" ou "vinagre para feridas". Bem aventurados são os pacificadores.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Alguns problemas no "filosofar"

Uma vez eu li que na filosofia existem dois problemas comuns ao tentar propor alguma "nova" teoria filosófica. O primeiro é correr o risco de estar "reinventando a roda", no sentido de que há o perigo de tentar propor algo que já foi proposto anteriormente sem nenhuma adição relevante ao debate. O segundo problema comum é tentar "arrombar uma porta que já está aberta", que é quando alguém faz um esforço enorme para tentar resolver um problema que já foi solucionado.

É verdade que existem muitos pensamentos valiosos e praticamente intocados em autoridades filosóficas do passado e que há também alguns buracos a serem tampados nesses pensamentos. É também verdade que muitos desses buracos já foram fechados e solucionados por autores modernos. Assim como há autores modernos que criticam certos tipos de pensamentos antigos e, mesmo parecendo absurdo, alguns pensadores antigos "abriram portas" que pensadores modernos criam estar "fechadas" e tentaram com bastante esforço "arrombar".

Eu acredito que seria necessário fazer estudos sobre autoridades filosóficas do passado antes de tentar sair criticando tudo e correr o perigo de incorrer em uma "falácia do espantalho" (i.e. quando alguém muda, consciente ou inconscientemente, o argumento original para então propor uma "nova resolução" ou abandonar a tese) e arruinar com a teoria toda. Assim como também é relevante saber o que se passa no debate contemporâneo sobre os mesmos tópicos, para evitar ficar endossando teorias das quais foram apontadas algumas falhas fatais e praticamente abandonada hoje em dia. O problema pode então ser a vasta extensão de textos sobre um determinado assunto.

Me parece que quando cavamos profundamente, em alguns casos, conseguimos encontrar uma base sólida para sustentar algum argumento, mas nem sempre esse argumento é aceito por todos, ainda que seja perfeitamente racional. Mas ainda assim continua sendo necessário aprofundar-se no tema desejado.

sábado, 5 de outubro de 2019

A incredulidade de um hobbit chamado Tomé

Estava eu a ler a terceira parte de "O Senhor dos Anéis" que se chama "O Retorno do Rei" quando, de repente, ao me deparar com uma frase de Gandalf, me veio à cabeça a coragem de São Tomé descrita no Evangelho de João. Gandalf está andando e conversando com o hobbit Pippin, que acabara de oferecer ao Regente a própria vida para lutar por um bem maior. Na conversa, Gandalf se questiona o que passara na cabeça ou coração do pequeno Pippin para ter jurado sua fidelidade "até que o mundo acabe", quando então Gandalf argumenta que não impediu Pippin de fazer tal juramento porque na visão dele as "ações generosas não devem ser reprimidas por conselhos frios". Talvez seja o caso de que Gandalf cogitasse a possibilidade de Pippin falhar, mas ainda assim ele viu que o ato nobre do qual Pippin se comprometera fosse algo para se inspirar ao invés de reprimir, procurando desculpas frias para fugir das responsabilidades.

Quando Jesus diz aos discípulos que tornariam para a Judéia, seus discípulos logo o repreenderam argumentando que a probabilidade de Jesus ser apedrejado por lá, era muito alta, visto que tal tentativa de apedrejamento já havia ocorrido havia pouco tempo. Seus discípulos encontraram uma resposta fria, argumentando que o ato de Jesus de ressuscitar Lázaro não valia a sua morte. Seus discípulos implicitamente argumentaram isso. À exceção de Tomé. Ele é o primeiro a bradar "vamos também nós para morrermos com ele". Se eu tivesse que opinar sobre o que aconteceu em seguida, eu diria que algum dos discípulos deu aquela leve cotovelada em Tomé dizendo: "Shut up, Thomas!"

Mas Tomé não é lembrado por sua coragem e seu ato nobre. Ele é lembrado mais tarde quando o Jesus ressurreto aparece e Tomé - não possuindo razões cognitivas para privilegiar o testemunho epistêmico - argumenta que daria privilégio somente a uma fonte elementar de obtenção de conhecimento. Ele só acreditaria na ressurreição tocando as feridas do Jesus outrora morto. A incredulidade de São Tomé não me parece ser tão diferente da incredulidade que temos em relação a outras fontes de conhecimento, sejam primárias ou secundárias, quando estamos falando do conhecimento de Deus. Mas isso eu não quero discutir aqui.

Será que todos vão lembrar do pequeno Pippin apenas por sua curiosidade em relação a tocar e ver Palantir, ou por sua nobre coragem de oferecer sua fidelidade? Ou, ainda: devemos argumentar friamente que não é razoável oferecer o nosso melhor pois as pessoas apenas lembrarão de quando falhamos?

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Idiota!

Em uma conversa com um amigo, quis saber a opinião dele sobre um trecho de um livro que compara os escritos de Dostoievsky com C. S. Lewis e afirma ser o primeiro muito mais impressionante que o segundo. Esse meu amigo então reclamou que, na opinião dele, os livros de Dostoievsky são demasiadamente lúgubres e que Dostoievsky e Lewis escrevem para públicos diferentes. Pode ser o caso dessa lugubridade, mas somente em alguns momentos. Os livros de Dostoievsky possuem diversos situações distintas que, muitas vezes são até mesmo hilárias. "O diabo que carregue a opinião desse meu amigo!"

O trecho do livro que compara Lewis e Dostoievsky fala especificamente dos clássicos "Os Irmãos Karamazov" e "Crime e Castigo", sugerindo que estes dois livros fornecem uma reflexão muito profunda das consequências práticas do niilismo. Infelizmente o livro "Os Irmãos Karamazov" não foi concluído pois Dostoievsky faleceu após terminar a primeira parte do livro, deixando seu "herói" sem uma continuação em sua narrativa. Não por isso o livro fica menos impressionante, mas dá uma tristeza não conhecer qual destino teria o personagem principal do livro. E, de certa forma, há uma semelhança muito grande entre o estado psicológico do personagem Ródion Romanovitch Raskólnikov de "Crime e Castigo" e Ivan Fyodorovitch Karamazov de "Os Irmãos Karamazov". A semelhança está no niilismo que ambos professam, embora um deles é "apenas" um niilismo proverbial – que, ainda assim, traz consequências desastrosas para a sua família – e o outro coloca seu niilismo anteriormente proverbial em prática cometendo uma brutalidade sinistra – embora ele demonstre uma bisonhice astronômica e um pavor que o corrói e torna os seus dias cada vez mais lânguidos. 

Embora não tenha finalizado a segunda parte do livro "Os Irmãos Karamazov", eu acredito que Dostoievsky direcionaria uma narrativa muito próxima do que foi o príncipe Míchkin, em "O Idiota". Pois Míchkin é totalmente oposto ao niilismo de Ivan e Ródion. Dostoievsky sugere na introdução de "Os Irmãos Karamazov" que, embora o livro seja um tanto entediante no seu início, o leitor talvez não se arrependeria de seguir até o fim da narrativa e verificar o que ele quer mostrar.

A ideia de Dostoievsky em "O Idiota" é escrever o que na sua opinião seria um "cristão ideal", ou pelo menos alguma espécie de cristão cujo comportamento seja positivamente notável. Suas principais inspirações são Dom Quixote (que eu ainda não li) e Jesus Cristo que, segundo o prefaciador da tradução da Editora 34 sugere ser de "uma imensa ternura e também de grande indignação".

Míchkin é um jovem de 26 anos, que sofre de epilepsia, mas também sofre por ser exaustivamente bondoso, honesto e de uma pureza marcante; ou seja, popular e ironicamente conhecido como um idiota. Parece que naquela época também não estava na moda ser assim.

A tentativa do príncipe Míchkin de entrega do seu eu é inclusive motivo de profunda indignação, como quando a personagem Aglaia se irrita com Míchkin por este se ver inferior aos outros, até porque, segundo ela, ninguém ali merecia as palavras dele e ninguém era digno do seu coração, inteligência, honestidade, decência, etc., e ela não entende por que não havia o mínimo de orgulho no pobre Míchkin.

Mas o Príncipe Míchkin não é apenas uma pessoa que fica constante e passivamente se rebaixando sem razões mas, com uma percepção incomparável sobre o comportamento das pessoas, é capaz de descrever as reais intenções e o caráter destas pessoas que estão à volta dele, tal como Rogójin - seu amigo que, no início se apresenta como uma fiel amigo mas posteriormente manisfesta sua verdadeira identidade desregrada e que confessa que sua ira para com Nastácia poderia fazê-lo terminar com a vida dela -, e Nastácia Filíppovna - cuja beleza encanta o Príncipe Míchkin, que oferece seu amor após toda a vida desgraçada que ela tem. 

Quero evitar spoilers. O fim do livro, podemos comentar durante um café, sem açúcar, se tu me pagar.

Não é um livro muito fácil de se ler. Uma das razões é a quantia enorme de personagens ordinários (e o próprio Dostoievsky dá uma atenção muito grande à essa ordinariedade, de certa forma elogiada pelo autor) que o livro apresenta e, para quem nunca leu algo da literatura russa, talvez fique ainda um pouco mais difícil tentar memorizar os nomes dos personagens. Mas acredito que vale muito a pena o esforço de ler esse livro, principalmente pela sua riqueza sobre estados psicológicos que Dostoievsky soube descrever com uma riqueza incomparável.

Tenho mais uma justificativa para considerar que a narrativa de Dostoievsky na segunda parte de "Os Irmãos Karamazov" seria muito próxima do que foi "O Idiota": o biógrafo de Dostoievsky, Joseph Frank, considera que o livro "O Idiota" é a obra mais autobiográfica de Dostoievsky. Ora, ninguém pode considerar alguém positivamente belo uma pessoa e não seguir de alguma forma esse ideal. Me parece que fazer uma excelente descrição de seu "herói" era o caminho que Dostoievsky queria seguir em "Os Irmãos Karamazov".

Nesses momentos de reflexões sobre os livros de Dostoievsky, me parece que "O Idiota" deu um salto para o primeiro lugar na lista dos meus favoritos, embora eu só tenha lido três até agora.